Atendimento

Precisa de ajuda?

Minhas compras

Acesse seus pedidos

Os desafios do tradutor

Como foi traduzir Robôs Universais de Rossum um século depois da sua publicação.

Todo fã verdadeiro de ficção científica sabe que a palavra “Robô” foi criada pelo escritor Karel Čapek em 1920. Ele escreveu a célebre peça de teatro intitulada R.U.R. – Robôs Universais de Rossum, que é famosa por ter dado ao mundo a palavra “Robot”, que é uma corruptela da expressão tcheca robota. Também não é segredo que o significado dela é trabalho pesado.

Quando R.U.R. foi encenado em janeiro de 1921, o sucesso foi tão grande que a peça de teatro, assim como a icônica palavra, se espalhou pelo mundo, mantendo-se o termo inalterado no idioma inglês.

O título do livro, na versão original era Rossum’s Universal Robots

Isaac Asimov cita R.U.R. em sua “magazine”, porém o faz sem dar à obra a devida importância. Para o criador das Três Leis da Robótica, R.U.R. é importante apenas por ter lançado a expressão Robô.Quando eu li isso, fiquei curioso por conhecer a peça de teatro e avaliar a qualidade dela pela minha lente, e não pela de outros. No entanto, ao procurar a tradução de R.U.R. para o português, eu não encontrei absolutamente nada, mesmo depois de virar a internet do avesso. Eu encontrei o original em tcheco e a versão em inglês. Então eu pensei “como assim não tem R.U.R. em português?”. Nascia naquele momento, mesmo que eu não admitisse para mim mesmo, o desejo de traduzir a obra e deixá-la disponível para os fãs de ficção científica de língua portuguesa. Comecei a estudar a versão em tcheco e a inglesa, e fiquei chocado ao descobrir que a versão em inglês traz mudanças injustificáveis, como a supressão de personagens, o corte de falas, a condensação de diálogos, entre outros detalhes. Por causa disso, deixei essa versão de lado e passei a trabalhar com a original.Por falar nisso, a versão original de Karel Čapek está disponível na forma de PDF. Não me refiro ao texto escrito em computador, mas o original publicado pela editora Aventinum, situada em Praga. Uma das cópias – que hoje está na biblioteca da Universidade de Toronto – traz um desenho na folha de rosto, um símbolo da empresa R.U.R. que deve ter sido desenhado à mão pelo autor.Josef Čapek, irmão de Karel, participou ativamente da construção desse clássico. Tanto que, ao final da obra, está escrito que ele usou o tipo Ohio modificado para a impressão, e revela até mesmo a impressora utilizada. Além disso, foram feitas duas mil cópias do manuscrito, e é ressaltado que isso aconteceu no inverno de 1920. O inverno na República Tcheca acontece de dezembro a março, justamente o período em que R.U.R. foi publicado e encenado.

 

Folha de rosto do manuscrito original de Karel Čapek de 1920. O título está em inglês. Logo abaixo se lê “Comédia sobre um drama coletivo com abertura e três atos.”

O processo de tradução para o português demorou em torno de dois anos. Ao longo desse período, eu estudei a língua o quanto pude para captar a essência que o autor queria passar. Desde o princípio eu decidi que seria extremamente fiel ao original, inclusive no título da obra.

Aliás, enquanto eu traduzia, descobri que já existe uma tradução de R.U.R. publicada em português. Ela, no entanto, tem um título totalmente diferente, e foi por isso que eu não a encontrei em minhas pesquisas iniciais.

Por falar no título da obra, é necessário entender a sua importância quase cabalística. Robôs Universais de Rossum guarda já no título uma mensagem importante. A palavra Rossum – sobrenome dos cientistas que criaram os Robôs – é corruptela de rozum, palavra tcheca que significa “sentido”, “razão”, ou “senso comum”. Se o termo Robô tem um sentido que quase remete a “escravo”, então podemos concluir que há uma mensagem escondida ali. O título talvez possa ser lido como Escravos Universais do Senso Comum. E só isso já justificaria manter o título como no original.

Mais além, a sigla R.U.R., se lida em inglês, soa como as palavras ARE YOU ARE, que não é uma construção lógica, mas que remete a um significado interessante. Então, R.U.R. parece dizer algo como “VOCÊ É”. Então, lendo o título completo, ficamos espantados ao descobrir que “Você é um escravo do senso comum universal”.

Alguém poderia sugerir que Karel Čapek não quis dizer nada disso, afinal ele era tcheco, e não inglês. Porém, o título da peça de teatro, no original de 1920, foi escrito e publicado em inglês, como se o autor quisesse mesmo passar uma mensagem nele. E aqui, nesta página, é provavelmente o primeiro e único lugar onde você vai ler esta análise de Robôs Universais de Rossum.

Esse é o trabalho de um tradutor. Muito mais do que substituir um idioma pelo outro, é preciso entender o que o outro quis dizer, e honrar o intelecto dele.

A língua tcheca é muito precisa e direta, sem rodeios. Isso facilitou a tradução. No entanto, alguns termos precisaram ser entendidos até a alma da palavra. Por exemplo, o personagem Hallemeier – chefe do Instituto de Psicologia e Treinamento de Robôs – repete muitas vezes a expressão “Hrom” em suas falas. Acontece que essa palavra significa “trovão”. Ele a diz totalmente fora do contexto do clima, e poderia ser traduzida incorretamente, sem dar o sentido certo para a frase. Por sorte, ela é o equivalente à nossa expressão “raios!”, dita quando alguém está praguejando.

Outra característica importantíssima da obra original é que ela sempre traz a palavra Robô com “R” maiúsculo, como eu tenho escrito neste relato. A razão para isso é um tanto obscura, já que não é explicada. Não tem nada a ver com a representação em si, como a palavra Deus que é sempre escrita com letra maiúscula em português e em outros idiomas. Alguém poderia sugerir que nomes de espécies ou de raças seriam escritos com primeira letra maiúscula no idioma de Karel Čapek, mas também não é o caso. Por exemplo, a palavra “humanidade” é lidstvo em tcheco, com “l” minúsculo. O mesmo para “homem”, que se escreve muž.

Considerando isso, podemos supor que os criadores do termo Robô – Karel e Joseph – decidiram colocar a primeira letra em maiúsculo para destacar o neologismo recém-criado, dando a ele, e ao que ele representa, uma importância capital.

Capa original da peça de teatro R.U.R., conforme publicada em 1920 por Karel Čapek.

Ao traduzir R.U.R. eu também percebi que a personagem principal da obra é Helena Glory. Isso não é explícito, já que há oito personagens humanos com papéis importantes, contando ela. No entanto, como Helena é uma estrangeira na ilha de Rossum, todas as atenções giram ao redor dela. Ao menos três acontecimentos de elevada importância no enredo acontecem por causa dela. Em primeiro lugar, ela é representante da Liga da Humanidade, uma organização não governamental que luta pelos direitos dos Robôs e, sem saber, os instiga a se revoltarem contra os humanos opressores. Em segundo lugar, Helena convence Harry Domin – o diretor geral da R.U.R. – a não triturar o Robô Radius, que mais tarde foi o pivô da revolta robótica. E, em terceiro lugar, foi ela quem destruiu a fórmula secreta de como fazer mais Robôs, com as consequências drásticas que vieram depois disso.

De certa forma, Helena Glory foi a agente do caos em R.U.R., apesar de ter suas intenções sempre pautadas na igualdade de direitos e no amor pela humanidade e pelos Robôs.

Esta faceta da personagem nos leva ao ponto alto da tradução de R.U.R. Como eu relatei no começo, Isaac Asimov escreveu que a peça de teatro de Karel Čapek era importante apenas por causa da criação da palavra Robô. No entanto, quando eu a traduzi, percebi uma riqueza ignorada. E essa riqueza vem de muitos fatores.

O primeiro, mas não menos importante, é o fato de que a revolta dos Robôs tem um sentido lógico, uma razão, um gatilho. Ao contrário de tudo o que foi feito depois de R.U.R., existe ali uma motivação para que os Robôs pretendam exterminar a humanidade. Eles são instigados pela Liga da Humanidade a se verem como os trabalhadores oprimidos explorados pelos humanos mais fracos, e essa é a razão para a revolta deles. Se pensarmos em filmes como Matrix ou O Exterminador do Futuro, a revolta das máquinas é iniciada sem uma causa, sem uma explicação, e sem a participação humana. Em R.U.R., os Robôs se revoltam porque alguns humanos mostram a eles que eles são uma raça explorada, escravizada. Só isso já justifica a grandeza de R.U.R. perante centenas de obras escritas depois.

Além disso, a peça é permeada por uma crítica social e política tão profunda e inteligente que a faz ser atual até os nossos dias. Questões como o capitalismo e o desemprego, os direitos humanos, o porte de armas, a relação entre empregados e empregadores, o uso político das minorias, entre outros, permeiam R.U.R. do início ao fim.

Por todas essas razões, dizer que R.U.R. é importante apenas por causa de uma palavra só pode ser fruto da cegueira, ou do incômodo que as críticas de Čapek causam, afinal ele alfineta praticamente todos os sistemas político-sociais, do capitalismo ao totalitarismo, golpeando também com muita força o comunismo que nasceu ao lado dele, na Rússia. Traduzir Robôs Universais de Rossum me trouxe a convicção de que essa peça de teatro é a obra mais completa e profunda que já foi escrita com a temática dos Robôs, e ela não foi superada depois de um século.

A edição comemorativa de RUR – Robôs Universais de Rossum, será publicada via financiamento coletivo pela Editora Madrepérola.

E quem quiser ouvir um podcast muito legal no qual eu, o editor Rafael Silvaro e o desenhista Vitor Wiedergrün falamos da nossa experiência de criação deste projeto, pode acessar o link para o Lanterneiro, que sempre traz conteúdo nerd e de cultura pop.

Confira nossa Entrevista para o Lanterneiro.

Rogério Pietro é escritor, tradutor, editor, professor, mestre e doutor. Seus livros de destaque são Predador Alfa (2014), Deus Salve a América (2015), e o infanto-juvenil Gabriel Querubim e os Guardiões dos Sonhos (2015). 

Share on facebook
Share on twitter
Share on whatsapp
Share on email

Veja mais...

No more posts to show
0
    0
    Seu carrinho
    Seu carrinho está vazio