Da gênese do tema aos dias de hoje, a literatura policial marca presença triunfante no gosto do leitor, ganhando formas e diferentes tons, sempre surpreendendo. Marcos Peres traz suas palavras sobre As Revelações de Arsène Lupin.
No começo, era Poe. Que frutificou e deu origem ao Sherlock, o centro do cânone e patriarca da “escola inglesa do crime”. Holmes também teve frutos, estudiosos de Lombroso e bebedores de chá das cinco. É desta escola que se popularizou a ideia de que o romance policial é algo esquemático (um corpo no começo e um assassino no final). Com Doyle que nasceu a ideia de que, para a construção do romance policial, seu autor precisa ter regrinhas bem decoradas, ser tão metódico quanto o raciocínio de seus protagonistas.
A ruptura acontece na América: os grandes cismáticos, Hammet e Chandler, subverteram a tríade crime-detetive-assassino. O romance policial, com eles, perde em raciocínio e ganha em ação; é menos maniqueísta, mais humano; torcemos para pessoas de caráter duvidoso e, muitas vezes, sabemos quem é o assassino desde as primeiras páginas; o Enigma perde espaço para os detalhes do crime, para a psicologia das personagens. E, entre os exegetas das cepas do romance policial, fica a impressão (a ironia) de que os franceses, de tanta virtuose literária, não tenham conseguido criar sua própria linhagem de roman noir.
Lupin é a resposta mais potente contra os que não acreditam em uma tradição francesa. Toma dos ingleses a intelectualidade e, para os americanos, antecipará a edificação do anti-herói.
Não se livra do tripé clássico que emoldura o Enigma, mas não se limita a isso: ao desfocar o detetive, ao eleger o criminoso como protagonista, abre espaço para indagações psicológicas, para o alargamento da construção da ética, para a mitigação do Leviatã como fonte inocente do bem e da ordem. Trata-se de um modelo complexo, que pisa nas duas fronteiras e que traz de cada ‘escola do crime’ suas maiores qualidades.
Hollywood compreendeu isso: Lupin, como 007, é capaz de protagonizar cenas de ação de tirar o fôlego e, como Poirot, deixa-nos estupefatos por seu raciocínio. Tem o vigor de um Sam Spade e o talento de um Ripley. O rigor cartesiano de Isidro Parodi e a solidão de Marlowe. Ler Maurice Leblanc não é apenas entretenimento, mas ter em mãos a compilação de modus operandi, de maneiras variadas que infratores e solucionadores do crime se enlaçaram em tantos jogos, em mil ardis. Não é pouco: o ladrão de casaca condensa, em si, o fascinante mote persecutório, as noções de bem e mal estendidas, dilatadas, subvertidas, o crime como jogo, como vingança ou como mero exibir-se (como biscoitagem, diriam as redes sociais). Também é um espelho do que somos; antes que eu e você percebêssemos, Arsène Lupin nos roubou vontades, sentimentos, amores e os mostrou, impiedosamente (um exposed, diriam talvez hoje). Lupin é atemporal: fala com aristocráticos estudiosos das escolas criminais e com exigentes influencers atuais. É universal: suas ações se passam na França, mas os sentimentos evocados, vingança, amor, justiça, conversam com qualquer rincão.
É preciso mais motivos para não começar imediatamente a ler essa pérola?
Aliás, é preciso dizer que nenhuma pérola estará segura em um mundo habitado pelo engenhoso ladrão de casaca?